Ernesto Tornaghi




Ernesto Tornaghi

Especialidade:

Acadêmico Patrono

Cadeira: 30

Patrono: destinado a Seção de Ciências Aplicadas a Medicina


Mini currículo:

Cabe-me falar, nesta noite, do meu patrono nesta Academia, o médico ERNESTO TORNAGHI. Faço-o com imenso prazer e infinita saudade. Conheci TORNAGHI em fins de 1939, pouco tempo após a minha fixação em Petrópolis, para exercer a profissão médica, ofício a que ali me dedico até hoje e que espero me conservará na bela cidade fluminense até o fim dos meus dias.

Dr. TORNAGHI também não era petropolitano de origem. Nasceu em Recife, a 17 de fevereiro de 1883. Filho do engenheiro Pedro Tornaghi, italiano de Milão, e D. Julieta da Silva Tornaghi, esta brasileira de Pernambuco. Na sua terra natal, fez o curso de humanidades. Atraído, talvez, pela profissão do pai, ingressou na Escola de Engenharia de Ouro Preto, ali só tendo cursado o primeiro ano. Brilhava em seu espírito uma vocação maior. Movido por ela, matriculou-se então na vetusta Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Faltaram-lhe, todavia, recursos materiais para sua manutenção no Rio. Não titubeou, entretanto, o jovem Tornaghi, pois fiel à vocação, como demonstrou o ser até a morte, cuidou de lutar para, de alguma sorte, prover sua subsistência e angariar os meios necessários a jamais interromper o curso do seu ideal. Assim foi que conseguiu emprego como revisor do Jornal do Comércio e, graças a aprovação em concurso, alcançando ser classificado em primeiro lugar, fez-se também revisor do Diário Oficial da República. Destarte, trabalhando, custeou ele próprio o seu curso médico. E o fez com tão grande proveito e amor que os seus colegas de turma, sabendo-o estudante pobre, mas entre todos sempre benquisto, ofereceram-lhe, quando da formatura, o anel simbólico da profissão. Fato este que o Tornaghi jamais ocultava; antes contava com sadio orgulho.

Durante o curso médico, foi interno, e dos mais queridos, do Professor Miguel Couto, por cuja inspiração fez sua tese de doutoramento, intitulada "Exsudatos e Transudatos", baseada em pesquisas e estudos procedidos na cátedra do Mestre e no Instituto de Manguinhos. A tese, cujo original não me foi dada a ventura de ver, foi aprovada com distinção, quando da sua defesa para a láurea doutoral. Médico pobre, vendo que não havia tempo a perder, procurou ambiente para começar a clinicar. Ei-lo em Matias Barbosa, Minas Gerais, a iniciar a profissão médica, que, de resto, a exerceu, já agora no Estado do Rio, nas localidades de Alberto Torres e Areal. Certa vez foi descansar um pouco na cidade mineira Porto Novo do Cunha, fronteiriça do Estado do Rio, do qual apenas o Rio Paraíba a separa. Ali conheceu àquela que se tornaria sua esposa, D. Antonieta da Fonseca Tornaghi, filha de um médico de Angustura, Dr. Henrique Duarte da Fonseca.

Casados, vieram para Petrópolis, cidade onde nasceram os quatro filhos do nosso Tornaghi, cidade a que ele serviu e amou com muito desprendimento, através do carinho, dedicação e exemplos na maneira como exercia a sua - e nossa - muito nobre profissão.

De físico, baixinho, um pouco alourado, pele avermelhada, compleição até certo ponto franzina, não recusava chamado, atendia com a mesma proficiência ricos ou pobres, jamais esquecendo de sua visita diária à enfermaria de Clínica Médica de mulheres do Hospital Santa Tereza, ali tendo dado sua assistência por mais de trinta anos. Só a doença que o prostrou fez com que ele deixasse de fazer a sua peregrinação diária pelos leitos de "sua" enfermaria. Seus doentes, ele os cuidava com absoluto carinho, sem jamais confundir tal virtude com subserviência. Quando os via morrer, transformava-se num sacerdote e, muitas vezes, ouvia-se o balbuciar das orações com que acompanhava o trânsito final do seu doente. Pois Tornaghi era um homem de muita Fé. E dava ao próximo, fosse ele quem fosse, um amor de irmão. Arranjava tempo para prestar-lhe, ao seu próximo, assistência social. Os morros de Petrópolis testemunharam infinitas vezes sua atividade benfazeja, vendo-o subir caminhos e atalhos, com os companheiros das "Conferências Vicentinas", em busca das casas e barracos dos menos favorecidos, a levar-lhes alimento, remédios, roupas, etc.

Homem de imenso valor, Ernesto Tornaghi. Dele, todos que tivemos a graça de conhecê-lo, colegas ou não, sempre tiramos lições de medicina, posto ter sido sempre um estudioso, como as tiramos de civismo, e, ainda mais, de humildade.

Vivendo numa época em que Petrópolis ainda não possuía instituições de ensino superior, acompanhava com carinho e muito interesse o que se passava em Niterói, na Faculdade de Medicina, amigo que era do Prof. Barros Terra, para apenas citar este, cuja figura muitas vezes vi em sua casa, à Rua D. Pedro, na serra, com quem conversava sobre coisas médicas, como se tivesse aulas a preparar. E ansiava por uma escola médica em Petrópolis, pois achava - tendo-me dito isso inúmeras vezes - que a nossa cidade assim teria um padrão científico à altura.

A sua inquietude pelas coisas do intelecto era tal que o levou para o seio da Academia Petropolitana de Letras, já em 1925, aonde foi recebido pelo poeta Salomão Jorge, um dos fundadores, ainda vivo, hoje idoso, residindo em São Paulo. Salomão Jorge, magnífico poeta, ao recepcioná-lo, chamou atenção para "a multiforme atividade de sua inteligência", para a dedicação com que exercia a sua profissão, médico estudioso que sempre foi, além das suas atividades de cronista sutil e poeta. E destacou a atividade criadora de Tornaghi e seu espírito de iniciativa. Com efeito, Tornaghi estava entre os fundadores da Sociedade Médica de Petrópolis, que a ele deve uma fase de intensa vida científica, como atestam suas atas. Tornaghi ocupou a presidência da Sociedade por três vezes, tendo sido secretário durante, quinze anos consecutivos, o que facilmente nos leva à conclusão do papel de verdadeira viga mestra por ele desempenhado na consolidação da nossa Sociedade Médica Serrana.

Ele mesmo publicou, às próprias custas, um opúsculo, contando a história da Sociedade Médica de Petrópolis quando esta completava o seu primeiro decênio. Ali, Tornaghi apresentou vários trabalhos: "Constante de Ambard", "Acidentes causados pela eletricidade industrial" (ele fora médico, por muitos anos, da Companhia Brasileira de Energia Elétrica), "Acerca dos Hospitais de Recife" (resultado de uma viagem que fizera à sua terra natal, de que sempre guardava muita saudade), "Um caso de ectasia sacciforme da aorta torácica", "Estudo terapêutico dos núcleos da base", "Análise da Icterícia", "A respeito da chamada gripe intestinal", "Um caso de poliserosite", "Um caso de sudoku", e muitos outros. Esse caso de sodoku, apresentado à Sociedade Médica em 1935, deu lugar a uma publicação que fez na revista "Medicina Cirurgia-Farmácia", então distribuída pelo laboratório Roussel; e da maior importância, pela extrema raridade da entidade causada pelo leptospira muris, tendo sido o primeiro caso registrado rio Estado do Rio e que levou o nosso saudoso colega a muito estudo e pesquisa. VaIe salientar nessa publicação, além do trabalho de pesquisa, a probidade científica e a boa e cuidadosa linguagem, a servir de paradigma aos que se dedicam à literatura médica em nossa. terra. Não fora ele, porventura, um dos brilhantes discípulos de Miguel Couto, mestre que admirava profundamente e cujas lições recordava a cada passo e sob qualquer pretexto!

Já na Academia Petropolitana, tivera Tornaghi como patrono Francisco de Castro, sobre quem, no discurso de posse, ele escrevia: "A sua figura empolgante, realizando o tipo do homem sereno e superior, que sabia guardar em todas as contingências da vida a mesma linha impecável de nobreza, fascinava a todos que dele se aproximavam, atraídos pelo olhar, pela palavra erudita e pela gentileza do trato". E, nesse passo, apreciava Tornaghi como em Castro se alinhavam o médico e o literato, de tal forma que, escrevendo medicina, fazia-o com tal apuro de linguagem e propriedade de estilo que, assinalava o meu patrono nesta casa, justificou a Candido de Figueiredo a seguinte referência: "A perfeição é tal que, lendo-se o Tratado de Clínica Propedêutica, tem-se a impressão de que se está lendo Latino Coelho e Alexandre Herculano".

Que tomemos também o meu patrono para exemplo a seguir quando escrevemos trabalhos científicos hoje.

Disse, linhas atrás, que Tornaghi também foi poeta. Sua tendência maior foi para o soneto. "Outono" (1932), "Resignação" (1934), "Mocidade", "Prima inter pares", "Recordando" (1944), "Ano Bom" (1945), "Em louvor", são títulos de alguns dentre os que deu a lume na imprensa petropolitana e que ficaram esparsos, a espera de alguém que os compilasse em volume de poesias.

Há, entretanto, uns versos de sua lavra, em que Tornaghi, aproveitando um tema de Vicente de Carvalho - "olhos verdes, olhos cor do mar" - revela a finura de sua poesia:

 

"Olhos verdes, cismadores,

Que guardais a cor do mar,

Através de longas dores

Já cansados de chorar!...

 

Estas cismas e pesares

De tão grande padecer

Não cabem mais nos olhares,

Chega de tanto sofrer.

 

Penas assim não merece

Quem na vida entrando agora,

Ergue ao céu ardente prece

E um alívio a Deus implora:

 

Olhos verdes, cismadores,

Não deveis assim chorar..

Já se foram vossas dores,

Podeis o pranto estancar.

 

Não quero ver esses olhos

Chorando em triste agonia;

Da dor se vão os escolhos,

Ao raiar de cada dia.

 

Olhos verdes, cismadores,

Que guardais a cor do mar,

Afastai as vossas dores

Para nunca mais chorar..."

 

Tornaghi era e foi um espírito multifário. Há muito o que dizer ainda sobre sua personalidade. Estudioso dos problemas sociais, fez diversas conferências sobre a matéria. Homem de fé, desprovido de qualquer laivo de respeito-humano, proferiu várias conferências e escreveu muitos trabalhos sobre temas religiosos, principalmente sobre a Eucaristia.

Um homem assim poderia suportar a doença, insidiosa e cruel, que pouco a pouco lhe tolhia a marcha e o equilíbrio, até que o levou a tornar-se preso do leito através de cinco penosos meses. Em 22 de julho de 1953, no Sanatório São José em Petrópolis, expirava Tornaghi, na máxima paz, deixando a todos um mundo de saudades. Foram setenta anos de vida, a serviço de Deus e do próximo, pois a ambos se dedicou com amor extremoso, através da sua própria profissão, de que foi realmente um sacerdote.

Sinto-me feliz em tê-lo podido escolher como meu patrono. É com muita honra que o tenho como tal. Permitisse Deus pudesse eu seguir sempre o seu modelo.

 

Biografia escrita pelo Acadêmico Jorge Ferreira Machado.


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